Canoas
para transportar sorvetes, pousos de emergência de aviões no meio da selva,
crateras nas rodovias e outros lances da epopeia logística enfrentada pelas
empresas para entregar suas mercadorias na Região Norte do país.
Em
São Gabriel da Cachoeira, município de 40 000 habitantes às margens do rio Negro,
no Amazonas, uma criança toma um sorvete que viajou quase 10 000 quilômetros
durante três semanas para chegar até ela. A epopeia começa no centro de
distribuição da Kibon, do grupo Unilever, na cidade de Taboão da Serra, na
região metropolitana de São Paulo. De lá, mensalmente, saem comboios de
carretas carregadas de produtos em direção às capitais da Região Norte do país.
O trajeto rodoviário de 2 900 quilômetros até Belém, no Pará, consome cinco
dias. Desse ponto, começa a etapa fluvial do percurso. Os caminhões seguem de
balsa até Manaus, onde parte da carga passa a ser transportada em catraias,
gaiolas e outras pequenas embarcações que abastecem vilarejos como São Gabriel
da Cachoeira. Em alguns casos, um freezer horizontal, mesmo fora da tomada, serve
como isolante térmico para preservar o carregamento. Em outras situações,
quando os trechos permitem apenas a passagem de canoas, os sorvetes são levados
em caixas de isopor com gelo seco. Por causa dessa complicada logística, os
preços dos produtos sofrem um acréscimo de aproximadamente 10% até o destino.
O
ritmo de aumento do consumo nos estados do Norte do país é um dos principais
motivos que levam uma empresa como a Unilever a fazer todo esse esforço
logístico. Entre 2002 e 2005, dados mais recentes do IBGE, a taxa de
crescimento da economia da região foi de 15%, a maior do Brasil durante o
período. A operadora de celulares Vivo, por exemplo, registra um crescimento
médio de assinaturas no Amazonas e no Pará de 48% nos últimos anos, o triplo do
índice registrado em São Paulo. Em 2007, na Região Norte do país as vendas de
cervejas ultrapassaram os 800 milhões de litros e as de refrigerantes somaram
1,2 bilhão de litros, recordes históricos. Todo esse crescimento, é verdade,
vem ocorrendo a partir de uma base pequena. No caso dos sorvetes da Kibon, o
consumo total da região é equivalente a um décimo do registrado no interior do
estado de São Paulo. Mas hoje, para as empresas, importa mais a expectativa de
crescimento que o tamanho do mercado. “Se deixarmos de abastecer o interior do
Pará e do Amazonas, os concorrentes podem tomar conta de tudo”, afirma Marcelo
Furtado, gerente de logística da Unilever.
A epopeia do sorvete
Manter
a presença na Região Norte não é das tarefas mais fáceis. Apesar do movimento
de migração de algumas fábricas para o Norte e Nordeste ocorrido a partir da
década de 90, o fluxo mais intenso para abastecer a região ainda parte do Sul e
Sudeste. E percorrer os quase 3 000 quilômetros que separam São Paulo de Belém
pode ser uma aventura. “Mas já foi muito pior”, diz o caminhoneiro cearense
Francisco Bruno de Lima, de 50 anos, da transportadora Rápido Canarinho, de
Atibaia, no interior de São Paulo. O percurso que hoje dura cinco dias
costumava levar duas semanas até dez anos atrás, quando grande parte do caminho
da BR-010 era de terra batida. “Agora é asfalto, com alguns buracos, mas é
asfalto”, afirma Lima. Uma pesquisa recente da Confederação Nacional do
Transporte (CNT) dá a exata idéia da epopéia que é dirigir até a região. Nas regiões
Norte e Nordeste ficam sete das dez piores estradas do país. Não bastassem
essas dificuldades, as companhias ainda esbarram numa série de processos
burocráticos, que são um capítulo à parte nessa jornada. Em Utinga, portão de
entrada do Pará pelo Maranhão, o processo de conferência de notas fiscais e
mercadorias realizado pela Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa)
leva cerca de 12 horas – por isso, é comum filas de espera com mais de 100
caminhões.
Na
ausência de uma malha rodoviária adequada, as empresas utilizam com frequência
o transporte fluvial, sobretudo para chegar ao interior dos estados do Amazonas
e do Pará. A região da Amazônia tem 25 000 quilômetros de rios navegáveis, mais
que o dobro das estradas existentes pavimentadas. A opção por esse caminho, no
entanto, implica viagens muito mais longas e demoradas. “Produtos com prazo de
validade curto dificilmente chegam aos municípios mais afastados”, afirma
Valmir Zanute, diretor da EBD, uma das maiores distribuidoras de produtos da
região. A probabilidade de encontrar itens como iogurte em pontos-de-venda
distantes de Belém e Manaus é a mesma que ver um jacaré passeando nos
corredores de um shopping em São Paulo.
O caminho das águas
Em
2007, a Coca-Cola tentou emplacar no Norte do Brasil sua água Aquarius, mas
teve de abandonar a experiência depois de alguns meses. A bebida, que tem prazo
de validade de 90 dias, demorava quase um mês para chegar a alguns destinos.
Com isso, o tempo para vendê-la nesse mercado era tão pequeno que não
compensava o investimento de transporte. No passado, outro produto da companhia
sofreu com as intempéries da região. Até o final da década de 70, a Fanta
Laranja chegava ao Acre descolorida. Durante a viagem, o sol castigava tanto os
engradados que fazia a cor artificial do refrigerante desaparecer. O problema
foi resolvido com a inauguração de uma fábrica da Coca-Cola no Acre. Mesmo
assim, nos primeiros tempos de vendas, parte dos consumidores estranhou o
produto. “As pessoas chegavam no mercado e pediam a Fanta ‘branca’, que era a
que elas conheciam”, diz Antonino Araújo, que na década de 70 trabalhou como
diretor do grupo Simões, empresa distribuidora da Coca-Cola no Amazonas.
Em
razão dos problemas enfrentados por terra e água, a distribuição de cargas na
Região Norte por transporte aéreo vem ganhando força como alternativa, ainda
que isso resulte em despesas maiores. Num percurso de aproximadamente 1 000
quilômetros, que vai de Manaus até Parintins, por exemplo, a entrega de uma
encomenda de 100 quilos realizada por avião custa 2 000 reais, o equivalente a
20 vezes o valor cobrado no transporte fluvial. Muitas vezes, porém, a
agilidade do serviço compensa essa diferença de preço. “Uma carga retirada do
aeroporto de Guarulhos às 20 horas estará em Manaus, já liberada para ser
distribuída, por volta das 10 horas da manhã seguinte”, afirma Marcus Sabino,
executivo de contas da companhia de transportes aéreos Atual, de Manaus. Para
gozar dessa agilidade, a filial brasileira da fabricante americana de brinquedos
Mattel embarca desde carrinhos Hot Wheels até as bonecas Barbie e Poly de avião
para a Amazônia. Atualmente, a Mattel envia duas cargas mensais de brinquedos,
com 300 quilos cada uma, para Manaus. “O desafio é não repassar esse custo
extra com a distribuição para o consumidor final”, diz Ricardo Roschel, diretor
de operações da Mattel. “O desempenho de vendas em estados como Amazonas e Pará
tem sido muito bom para a empresa, o que ajuda a equilibrar o custo da
operação.”
Por
causa da demanda de clientes como a Mattel, o mercado de táxi aéreo da Região
Norte anda bastante aquecido. A Amazonaves, de Manaus, uma das companhias que
prestam esse serviço, dobrou seu movimento nos últimos cinco anos com a entrega
de insumos para a Petrobras e de bens de consumo como roupas, cosméticos,
bicicletas, produtos eletrônicos e computadores para distribuidores locais. Mas
se as rodovias sofrem com buracos e as hidrovias com a falta de portos, o
transporte aéreo padece com as chamadas “zonas escuras”. “Somos desprovidos de
informações de Vôo, não existe nenhum apoio no interior da Amazônia para a
navegação aérea”, afirma Geraldo Picão, sócio-fundador e piloto da Amazonaves.
Em 2002, um piloto da empresa fez um pouso de emergência numa área de mata
fechada e seu corpo só foi encontrado 90 dias depois. Outra dificuldade é com o
abastecimento, já que, além da capital Manaus, apenas quatro municípios –
separados entre si por 3 horas de vôo – têm estrutura para abastecer os aviões.
“Voamos com aviões Caravan, que têm apenas 6 horas de autonomia de vôo, o que é
um complicador”, diz Picão. No estado de São Paulo existe um aeroporto para
abastecer a cada 15 minutos, o que dá uma idéia da aridez aeroportuária da
Amazônia.
Com
características tão peculiares, mesmo o transporte de uma garrafa de
refrigerante apresenta desafios na Amazônia quando o destino da entrega é em
localidades como Guajará, na fronteira do Amazonas com o Acre. “Talvez esse
seja o nosso destino mais complicado, a começar pela distância”, diz Aristarco
de Paula Neto, presidente do grupo Simões, que distribui os produtos Coca-Cola
na região. Partindo de Manaus, em linha reta, seriam 1 300 quilômetros até
Guajará, mas não há rodovia que ligue as duas cidades. A única rota possível é
a fluvial, primeiro pelo rio Solimões, depois afluentes cada vez menores até o
rio Juruá – o que resulta em 4 600 quilômetros da capital do estado até a
cidade, a última fronteira da Amazônia. Apesar do uso intenso dos rios, eles
nunca foram devidamente mapeados e não existe orientação oficial quanto à
localização dos temidos bancos de areia, o que, não raro, causa acidentes. “Já
perdemos cargas inteiras com barcos que tombaram após colisão com os bancos de
areia”, disse Paula Neto. “No final das contas é a experiência do nosso caboclo
que faz a balsa chegar ao destino.”
Fonte: Revista Exame/Portal Transporta Brasil
Marcos Lima